NO TEXTO ABAIXO, RÁ SONHA ESTAR NA LARANJA...

Por detrás das cílias cerradas de Rá, abrem-se as trevas.

Aquele cérebro tenro, com tão poucos dados sobre o curto passado,
por isso mesmo é impressionabilíssimo, comparado ao dos enks
adultos. Para ele, o silêncio é mais vazio. O escuro... deixa
negros vergões. O medo... arranha cicatrizes indeléveis...

- Pai! Mãe! Socorro! - tentam pronunciar os jovens lábios trêmulos.
E a paralisia do terror impede a fala. E o pensamento debate-se:
"- Faça!" - sussura, turra e urra, mas da boca não passa:

- Ali... Ali no canto!... Está ali. Parado ali. Dentro do escuro...
Sabe de mim. Observa-me! Não enxergo, porém é horrível!
Tem ocelos, um monte! E tentáculos!... E veneno!... E tem
quelíceras, e chifres!... E é grande! Muito,
muito forte! Não consigo mexer!...

Mãe!... Minha voz não sai... Socorro!!!

Pai!!!

O monstro é fedido!...Chega a dar gosto ruim na boca!...
E não se move! Só fica ali me ocelando; ali, parado!...

Ali... no canto escuro!...

O ar está duro... E eu dentro. Não me deixa andar... Aqui na
Laranja é mais escuro, de lúmia. E o bio não me escuta!

Bio! Socorro!... Pai! Mãe! Tem um monstro aqui!!! Quer me pegar!

Devo estar sonhando... No entanto, se estou, devia acordar ao
saber! E se não acordo, não é sonho! É... de verdade!!! E eu de pé,
aqui na Laranja, sem poder andar!... E o monstro ali!
Ali, no canto! Ali... no canto escuro!... Ali!!!

Tenho de conseguir enxergar! Abro mais os írios, e
não adianta! Só aparecem manchinhas de géon.

Ele pode esticar um tentáculo e deslizar em mim! depois me agarrar!
Ou pode saltar e me estraçalhar! Pode esguichar veneno de
longe em meus írios!!!... E não faz!... Não faz nada,
meu Géo! Fica só ali; ali, parado, dentro do escuro!

Não posso mover-me. Não consigo falar. Entretanto, posso pensar.
Devo ter calma. Se ele existe, tem de ser um pedacinho de Géo.
Tudo é pedaço de Géo! Talvez possa ler meus pensamentos!!!

Monstro! Escute-me! Por favor, escute!... Sou bom! Do Bem!...
Quero o Bem a Você! Você não é mau, também!
Todos somos pedacinhos de Géo! Tudo é!

Não adianta... Não ouve! Não sabe ler pensamentos. Ou talvez
não compreenda. Vou pensar a mesma coisa, sem palavras:

"( )! ( )! ( )!... ( )! ( )!... ( )! ( )! ( )! ( )!".

Não... Não funcionam imagens mentais. Não percebe,
tal como não escuta. Ou, não quer perceber.

Preciso mover-me!!! Não... agüento... mais!

Mexi... a mão!... Consegui! Vou virar o ritmoginho de pulso para
o monstro se ocelar no reflexo!... Tem de haver um reflexo! Em
todo lugar há géon... Ele deve enxergar! Isso! Isso mesmo!!!

Monstro!... Sua imagem!... No reflexo!... Ocelou?! É bonita!...
Tudo é bonito! É um pedacinho de Géo!... Nada é do Mal! O
Mal não existe! Só mais Bem e menos Bem!...
Você tem de ser do Bem!

Isto vai adiantar!... Como nas seqüegéticas
de Terror! Como nos filmes de Terrar!...

Monstro! Está enxergando? Tem tantos
ocelos!... Tem de estar ocelando o reflexo!

Não... Também não adianta!... Está escuro demais. Talvez
nem ele possa distinguir a própria imagem, de tão disforme. Ou
é pretíssimo e nem produz imagem! Mistura-se ao ambiente!
Ao escuro! Pode ser o próprio escuro! A escuridão animada!...
Não produz imagem de propósito! Assim não pode se ocelar
no reflexo e não percebe Géo em si mesmo! Ora, como posso
saber dos tentáculos, dos ocelos, dos chifres,
do veneno, das quelíceras?!...

Pelo cheiro? O fedor?... Qual! nunca senti
igual! Não poderia saber de onde vem!

Pelo beldo de Géo!... Monstro! Mexa-se! Faça alguma coisa!...
Pule de uma vez!!! Estique um tentáculo e toque-me!
Mate-me, se quiser; ainda assim... faça alguma coisa!!!

Opa! Eriei!... Sim!!! É um chiado! Parece respiração!... Ele estava
em silêncio, e já respira! Ou eu não eriava, e agora escuto!

E há uns sons de coisa melada mexendo!... Nesse caso,
não está imóvel. Só não sai dali... todavia se mexe!

Pai! Mãe! Bio!... Socorro!!! Estou sozinho aqui na Laranja, e
tem um monstro no canto!... Ali! Bem ali! No escuro! E
não consigo pensar direito! Tudo se repete mil vezes!...

Só penso no canto escuro... Só me vem à cabeça
a mesma frase... Ali... no canto escuro!...

Bio!... Você detecta pensamentos!
E não me escuta!!! Ajude!!!

Frio!... Arrepios de frio... Apesar disso, o monstro é quente! Sinto
o calor dele, ali no canto escuro!... Não... Não são arrepios de frio...
Meus arrepios são de medo... Arrepios de medo!... E não devo
ter medo. Sou um Enk! Filho de Clausar! De Gia! Neto de Rasek
e Clária! Não devo ter medo!... Embora tenha... Muito medo!
Medo demais! Medo horrível!... E estou congelado, imobilizado...
De medo? Ou é alguma géa maligna do monstro?

Não... Não existem géas do Mal. Não existe o Mal... Não posso
ficar aqui para sempre. E ele, ali. Ali, bem no canto! Ali... no
canto escuro!... Quente!... Próximo!... Grande!... Invisível!...
Fedido e melado! Cheio de tentáculos, e ocelos, e veneno, e tudo!...

Não estou bem desperto... Não raciocino direito. E sinto este
gosto horrível na boca... Não é sonho. Estou certo disso. É real
demais!... Deve estar me soniotizando. Felizmente, soniose não
pega em quem não quer. Meu pai me disse!
Ele entende muito de soniose!...

Meu braço!!! Ele tocou meu braço!!
Ou não?! Ou foi imaginação?!